Depois de humilhar Volodmir Zelenski e suspender apoio na guerra contra a Rússia, EUA anunciaram rodada de negociações com Ucrânia e recuaram nas tarifas a aliados
Por Luiz Raatz | Para Neto Gaia
Enquanto pessoas normais como eu e você apreciavam os festejos momescos, o mundo que conhecíamos desde o fim da 2ª Guerra foi implodido por Donald Trump no meio do carnaval, enquanto o Olodum descia a ladeira do Pelourinho.
Há um ditado atribuído a Lenin que diz: “Existem décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem”. Ainda que Trump não seja exatamente um bolchevique, a frase descreve perfeitamente o que aconteceu nos últimos dias.
Na sexta feira, o presidente e seu vice, J.D. Vance, armaram uma arapuca para o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, no Salão Oval da Casa Branca. Com a ilusão de que um acordo para a exploração de minerais críticos garantiria algum tipo de ajuda americana contra a Rússia, Zelenski fez uma série de concessões para, diante das câmeras e em tempo real, ser humilhado. Nunca em décadas de diplomacia americana um aliado tinha sido tratado dessa maneira na Casa Branca. Expulso do Salão Oval, Zelenski saiu de mãos abanando de Washington.

Um ativo do Kremlin?
Mais do que uma humilhação qualquer — e Trump é afeito a elas com alguma frequência — a treta na Casa Branca fez com que muita gente se perguntasse em voz alta o que muitos se questionam no particular há anos: existe, de fato, a possibilidade de Trump ser um fantoche colocado pelo Kremlin no cargo da maior potência do planeta?
Thomas Friedman escreveu sobre essa possibilidade logo após o bate-boca. Neste Estadão, Lourival Sant’Anna lembrou que os laços de Trump com o Kremlin remontam à era soviética e, constantemente, ele dependeu do ouro de Moscou para manter seus negócios de pé.
Se Trump se aliou à Rússia por convicção ou pressão, não se sabe. O que é possível atestar é que ele e Putin compartilham uma visão de mundo similar. Ambos veem no “globalismo” um inimigo, seja lá o que “globalismo” signifique de fato. Além disso, os dois odeiam a chamada ‘cultura woke’ e manifestam frequentemente o desprezo por minorias sexuais e étnicas. Por fim, tanto o ocupante da Casa Branca quanto o do Kremlin mostram um certo apreço por governar por decreto.
Sob essa ótica, a União Europeia, com suas liberdades individuais, instituições democráticas, e portas abertas à imigração e à inclusão, se tornou a antagonista ideológica natural do eixo Trump-Putin no Ocidente. É verdade que desde a chegada de Trump ao cargo já havia sinais do afastamento entre europeus e americanos, mas o esculacho público para cima de Zelenski acendeu o sinal vermelho nas principais capitais do Velho Continente.
A reação da Europa
Ainda na sexta, os principais líderes europeus cerraram fileiras em torno do ucraniano, em um ato de desagravo: Emmanuel Macron, Friedrich Merz, Donald Tusk, além de chefes de governo da Holanda, Noruega, Finlândia Portugal e Espanha correram para abraçar Zelenski, após constatar uma verdade inconveniente: a Otan está morta.
Diante desse diagnóstico sombrio, a Europa não perdeu tempo a estruturar sua resposta ao colapso da aliança atlântica. Ainda no sábado de carnaval, o Reino Unido liberou US$ 2,6 bilhões em ajuda militar à Ucrânia. No domingo, uma cúpula de emergência em Londres reuniu britânicos, canadenses, turcos e a UE. A conclusão era óbvia: a Europa precisa se rearmar. Na quarta de cinzas, Emmanuel Macron falou em estender a proteção nuclear francesa para toda a Europa.
Na segunda-feira, veio o contra-ataque de Trump. A ajuda militar à Ucrânia foi suspensa. Em paralelo, o presidente americano impôs pesadas tarifas contra o México, o Canadá e a China.
Assim, agora que o ano de fato começa para nós brasileiros, temos o seguinte cenário decorrente do desmonte das alianças políticas e econômicas entre americanos e europeus:
- As decisões de Trump terão um impacto econômico interno, com alta de preços, e externo, com uma valorização do dólar
- Os europeus buscarão novas parcerias econômicas e militares para compensar o afastamento americano
Tarifas, inflação e o dólar
Trump já implementou tarifas contra China, Canadá e México, além de setores como alumínio e aço. Impostos de importação sobre produtos da União Europeia são esperados para os próximos dias. Outros países estão na mira da guerra comercial do republicano, entre eles o Brasil.
Todos os produtos que os EUA importam da China pagarão uma taxa de 20% sobre seu valor. As importações vindas de Canadá e México, com exceção de peças automotivas e veículos, pagariam 25%. Uma alíquota similar deve ser imposta à UE.
Um estudo da Tax Foundation, um instituto apartidário americano que estuda políticas fiscais, indica que com as tarifas já anunciadas por Trump o governo deve arrecadar mais US$ 426 bilhões neste ano. O déficit americano em 2024 foi de US$ 1,8 trilhão.
Mas essa arrecadação tem uma série de contrapartidas. Elas levariam, ainda de acordo com a Tax Foundation, a um impacto negativo de meio ponto no PIB americano deste ano, caso sejam levadas a cabo. O valor de empresas ligadas as principais indústrias importadoras com capital aberto na bolsa americana deveria recuar 0,4%. Mais de 500 mil empregos seriam afetados.
Além disso, um segundo estudo feito pelo Yale Budget Lab estima que as famílias americanas deveriam gastar entre US$ 1,6 mil e US$ 2 mil a mais por ano por causa das tarifas, o que equivaleria a um aumento nos preços de 1% a 1,2%.
Isso acontece porque são os importadores que pagam pelas tarifas e repassam o valor para o consumidor final. Com isso, uma série de produtos fica mais cara. Há décadas, os consumidores americanos se beneficiam do baixo custo das importações no país para desfrutar de produtos de diversas partes do mundo, desde eletrônicos feitos na Ásia a carros produzidos no México e até vinhos franceses e italianos.

Faz parte da dinâmica social americana: se os serviços públicos são raros e o cidadão frequentemente tem de pagar por eles, ao menos o consumo de bens duráveis e não duráveis é facilitado e abundante.
Só que com as tarifas, a brincadeira fica mais cara. Trump foi eleito com a promessa de baratear o custo de vida, que no governo Biden disparou por conta do pós-pandemia e da guerra na Ucrânia. As tarifas já começam a arranhar sua avaliação. Uma pesquisa do instituto Ipsos em parceria com a Reuters um mês após a posse indica que 51% dos americanos desaprovam a gestão de Trump na economia. Ele é aprovado por 39%. Dois em cada três americanos dizem que o país está no rumo errado para diminuir o custo de vida.
Ainda que os preços tenham parado de subir no governo Biden por causa da alta de juros do Fed, ainda estão em patamares elevados. Para piorar, assim como no Brasil, produtos pontuais estão tendo picos de preço, como é o caso do ovo. Com mais inflação, dificilmente o Fed cortará juros. Isso provocará uma corrida mundial a ativos seguros, como o dólar e títulos da dívida pública americana. É o oposto do que Trump quer fazer ao encarecer as importações e baratear as exportações americanas.
A corrida armamentista
Como escrevi na semana passada, era uma questão de tempo para os europeus se rearmarem. A cúpula da UE hoje em Bruxelas deixou isso claro, com a promessa de 800 bilhões de euros em investimento em Defesa para os próximos anos. Com grande parte de seus membros endividados, no entanto, Bruxelas deve flexibilizar as regras de endividamento do bloco. Na Alemanha, o novo chanceler Friedrich Merz deve aprovar uma lei nesse sentido no Parlamento — algo que seu partido, a CDU, sempre lutou contra.
Mas, mesmo que esse plano seja colocado em prática, o caminho não é simples. A Europa depende militarmente dos EUA desde 1945. Há quem diga inclusive que os europeus vão acabar fazendo justamente o que Trump queria: aumentar seu Orçamento de Defesa e, de quebra comprar material bélico americano.
Publicado e Atualizado: nesta sexta-feira, 7 de março de 2025.