É preciso entender por que 37 mil pessoas vão à Avenida Paulista defender Bolsonaro no momento em que seu líder coloca seus interesses pessoais acima do Brasil
Por Marcelo Godoy | Para Neto Gaia.
04/08/2025 | 09h 30 | Atualizado às 10h 55.
O escritor espanhol Jorge Semprún acompanhou o kapo do alojamento até a cama do sociólogo francês Maurice Halbwachs, detido pela Gestapo e internado como ele no campo de concentração de Buchenwald. Era 16 de março de 1945.
— Dein Herr Professor kommt heute noch durch’s Kamin (“O seu professor irá hoje pela chaminé“) .
Halbwachs – conta Semprún –, não tinha forças para abrir os olhos. O autor de La memoire collective (A memória coletiva) pressionou de forma ligeira as mãos do escritor: estava no limite de suas forças, emaciado pela disenteria. Pouco depois, conseguiu olhar o amigo. Tinha fome de dignidade diante da aproximação da morte. Tomado pelo pânico, Semprún, ignorando se podia evocar algum Deus diante do mestre – ou que oração fazer –, lembrou os versos de Le Voyage (A Viagem), de Charles Baudelaire:
-O mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre. (Ó morte, velho capitão, é tempo! Às velas!)
Halbwachs ouviu e se espantou. Semprún continuou a declamar os versos finais do poema até que o professor sorriu e se foi. Tratar desse episódio e dos significados que ele carrega é também recordar como o filósofo Paul Ricoeur o examina ao abordar a memória, a história e o esquecimento. Trazê-lo ao presente do País nos ajuda a lembrar, essa forma de o presente se relacionar com o passado, ainda que ele seja apenas ontem.
Era tarde de domingo quando 37 mil pessoas foram à Avenida Paulista pedir que a Justiça esqueça os crimes cometidos pelos que invadiram a sede dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. Ou que conspiraram e colocaram em execução operações que tinham como objetivo matar o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, além de cancelar as eleições e instaurar uma ditadura.
A palavra de ordem era “anistia”. Lá estava o vice-prefeito de São Paulo, o tenente-coronel Mello Araújo, pastores e alguns outros políticos. Mello Araújo defendeu o perdão aos criminosos. E disse que a voz do povo na Paulista era a “voz de Deus”. Fora apresentado como alguém que governa a “quatro mãos” a maior cidade do País. O prefeito Ricardo Nunes estava lá, mas ficou em silêncio. O governador Tarcísio de Freitas não apareceu.
Qual a lembrança que as 37 mil pessoas que estiveram ontem na Avenida Paulista terão de um ato convocado para a defesa de Jair Bolsonaro? Como o País se recordará desse episódio, da reunião de tantas pessoas vestindo a bandeira nacional no momento em que seu líder coloca interesses pessoais acima daqueles do Brasil? Qual memória se terá de quem apoia um tarifaço contra o País para submeter o Congresso e a Justiça? Não só.
Por que Bolsonaro e seus filhos continuam a publicar vídeos nas redes sociais do ex-presidente, sabendo da proibição da Justiça? Querem escalar a crise? Ou estender uma armadilha ao Supremo? Por que 37 mil pessoas consideram que Eduardo Bolsonaro age com honestidade de propósitos e, ao não encontrar solução dentro das instituições do Brasil, julgam legítimo o recurso a uma potência estrangeira contra o seu próprio País?
Mais ainda. Qual seria a próxima solução catastrófica a ser considerada após um ministro do STF exibir o dedo médio em um estádio de futebol? O recurso à violência política? O que frustração e ressentimento ainda podem produzir? Há muitas perguntas. E as respostas de uns e de outros se parecem. A radicalização política e a ameaça de Jair Bolsonaro ter a prisão decretada mostram que ninguém está disposto a ceder.
A escalada do confronto não se detém diante de valores e de princípios que nos distanciam do estado de natureza hobbesiano. Moraes não entende que é chegado o momento em que somente uma rigorosa defesa da institucionalidade, o que significa a renúncia às manifestações fora dos autos, pode servir de resposta à radicalização? Quando a Justiça não é mais vista como o espaço legítimo para a solução de conflitos, o que pode restar senão o recurso à violência?

É diante desse quadro grave que a decisão de Tarcísio de Freitas e de outros governadores de não comparecer ao evento na Avenida Paulista após o tarifaço assume uma importância capital. Eis uma decisão que deve servir de exemplo. E ser lembrada. Para explicar melhor o significado da ausência do governador é preciso recuperar um episódio da última eleição municipal.
Ricardo Nunes estava acossado durante a campanha de 2024. Corria o risco de ficar fora do 2.º turno, quando Bolsonaro resolveu trair o prefeito. Pensava que apoiar Nunes era como aceitar uma viagem de primeira classe no Titanic. Foi mais longe. Aconselhou o governador Tarcísio a abandonar o barco.
O governador de São Paulo podia ter seguido o conselho do ex-presidente. Não seria nada estranho em um momento em que tantos integrantes do bolsonarismo insistiam em inflar a candidatura de Pablo Marçal, a despeito das ligações de diversos integrantes do partido do coach, o PRTB, com o Primeiro Comando da Capital (PCC).
O que poucos sabem é que, naquele momento, Tarcísio confidenciou a Nunes que vivia um drama. Exames médicos detectaram nódulos em seu corpo. Temia-se que fossem malignos. O governador tomou uma decisão que ligou seu destino ao de Nunes: só iria operar, caso fosse preciso, depois da eleição.

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Pode-se imaginar como essa história estreitou os laços entre o prefeito, que, não só foi ao segundo turno, como acabou reeleito, e o governador. Esse tipo de compromisso demonstra o caráter de um homem público. Pois foi justamente para tratar de um nódulo que Tarcísio se internou no domingo no Hospital Albert Einstein e, em razão disso, afirmou que não poderia comparecer ao ato na Avenida Paulista.
Tarcísio teve uma postura dúbia quando Trump anunciou seu tarifaço. Não conseguiu se distanciar da conduta de Eduardo Bolsonaro porque tem medo de abrir mão dos votos daqueles representados pelos 37 mil que estavam na Paulista, no domingo. Parecia esquecer que esses eleitores jamais serão do PT ou que qualquer candidato identificado com Bolsonaro tem hoje mais a perder do que a ganhar em uma eleição.
Passados alguns dias, Tarcísio e Nunes procuraram se distanciar do apoio ao tarifaço. O mesmo caminho foi trilhado pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado. Os dois aliados de São Paulo escolheram submergir. Mas a história dos nódulos de Tarcísio mostra que o governador estaria na Paulista se acreditasse que ali estava em jogo alguma coisa pela qual valesse a pena lutar. Preferiu o silêncio. E virou alvo dos radicais.
Enfim, se pode resumir assim o dilema do partido da ordem: esquecer o 8 de Janeiro é expor o País ao risco de ele se repetir. Que memória se terá daquele dia? Grupos políticos, povos e sociedades costumam comemorar acontecimentos fundadores de suas comunidades. Muitas dessas datas e festas ao longo da história lembram guerras, batalhas e atos violentos legitimados mais tarde pelo direito. “A glória de uns foi a humilhação de outros”, escreveu Ricoeur.
Por isso, é preciso que a memória se torne objeto de reconciliação com o passado, pois as feridas simbólicas pedem uma cura; mas sob a égide da Justiça, se não tudo será abuso ou farsa. Qual o futuro que os que foram à Paulista e os que observaram com desdém e espanto tal reunião pretendem construir? Procuram manter identidades diante da rejeição mútua. Eis a fragilidade dos atores desse drama.
Aprende-se com a memória. Saber de cor os versos de Baudelaire revela uma forma desse aprendizado, exibindo como aquela se manifesta e se constrói. A civilidade e a cidadania devem ter a mesma construção. É preciso saber de cor os valores fundadores da Constituição e poder sorrir ao ouvi-los, ainda que diante das maiores adversidades.